quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Céu


Enquanto ele estava deitado na cama, começou a sentir uma saudade enorme de quando a mãe o benzia, o cobria, apagava a luz do quarto e saia dizendo:
- Dorme com os anjinhos, meu amor!
“Meu amor”, as pessoas deveriam fazer um contrato concordando com todos os termos nele pré-estabelecidos antes de saírem por ai dizendo essas palavras. Salvo as boas mães.
Lembrou também que podia acordar sem preocupar-se com nada nem ninguém. Podia ser sincero ao responder a famosa pergunta:
- O que é que você tem?
Ah, como ficava feliz em poder dizer que era só uma dor de barriga, um corte na perna, que estava triste porque viu um passarinho morto. Sim, ele podia dizer o que tinha. Criança não esconde nada que lhe doa, mesmo quando é um assunto do coração.
Hoje em dia ao ouvir a mesma pergunta ele diz que não tem nada, e que não demora passar. Mas qualquer um sabe que quem diz não ter nada, tem mesmo é um pouco de tudo.
Foi crescendo e descobrindo que muita gente iria levantar a voz para ele, que iriam brigar sem mostrar motivos lógicos para isso, e que a única coisa que poderia fazer seria contabilizar no final do dia os sapos que engoliu.
Sentiu sua própria falta. Falta da capacidade que tinha de achar graça nele mesmo. Como quando você tropeça na rua e um quarteirão depois já é capaz de rir de sua trapalhada. Sentiu vontade de largar certos vícios que foi adquirindo ao longo dos anos para tentar esquecer coisas e pessoas. Sentiu remorso por ter brigado com o melhor amigo, por não ter retornado algumas ligações, por ter recusado convites de pessoas adoráveis, e tudo isso para que? Para correr atrás de um não sei o quê, um não sei quem.
Constatou que antes não tinha problemas para dormir, para comer, para conversar e nem para chorar em público. Agora, sofria de insônia, pulava refeições, limitava-se a responder somente o necessário, e chorava sozinho escondido no banheiro, graças a um comentário ridículo que ouviu certa vez, de que quem chora na frente dos outros é fraco.
Perdeu a inocência que trazia consigo, quis mandar em tudo, em todos. Tornou-se prepotente diante de determinadas situações. Fechou-se num casulo que construiu em volta de si, aderindo ao lema do: cortar antes que cresça.
O lado bom disso tudo foi que ele ganhou experiência. Entendeu por exemplo que nem sempre o cheio é melhor que o vazio, que sua família não era a pior do mundo, que carteira de motorista não simboliza carta de alforria, afinal você pode fugir, mas e quando o combustível acabar? E por mais idiota que ele fosse, Deus haveria de lhe dar uma nova chance para se encantar com a vida.
Tudo isso que o incomodava tanto hoje, amanhã não passará de um ontem não resolvido. Aos poucos a sensação de que nada andava acontecendo ia se dissolvendo no escuro.
E no silêncio que abafava o quarto, pediu para que o dia nascesse logo. Essa seria sua oportunidade de alcançar e buscar o céu para alguém.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Livre



Normal seria se uma carta começasse com um cumprimento, mas uma começando com “Adeus”? E de tão anormal que achou, sentou-se rapidamente para poder ler. Não tinha cabeçalho, estava amassada, molhada da chuva, meio borrada. Tinha conteúdo triste, pôde perceber rapidamente.

(...)

Adeus,

Não se surpreenda quando eu não estiver mais aqui amanhã, nem sei como consegui ficar até hoje. Cheguei ao ponto de não saber se você anda me fazendo bem ou mal.
Juro do fundo do meu coração que preferia nunca ter lhe conhecido, que ninguém tivesse nos apresentado. Eu estava bem antes, e agora sinto uma dor tão forte na boca do meu estômago, uma dor tão grande que preciso vomitar toda a minha raiva em você. Caso não saiba, raiva não é o contrário de amor, o contrário é a indiferença, isso que você pratica dia após dia.
Cansei de estar sempre disponível para ouvir, cansei de mostrar o lado bom, embrulhando com fitas tudo de bonito que queria compartilhar, cansei de ser carinhoso, cansei de esperar notícias suas. E o pior de tudo, cansei até de mim. Se você gosta de todos os pingos nos is, vou mais além, gosto de pingos nos jotas também. Impossível passar por cima de tudo.
Eu sabia me expressar, achava que era suficientemente brilhante para iluminar o meu próprio caminho, mas não consigo emitir um mísero feixe de luz agora.
Queria trocar tudo isso por alguma outra coisa ou algum lugar que valesse mais a pena. Você é uma alma solitária, não tem noção nenhuma do seu destino, e ainda tem coragem de dizer que quer mudá-lo. Tento convencer-me freneticamente a cada dia de que a única coisa que preciso para sobreviver é o ar que respiro.
Não vou arriscar novamente, você tem o dom de me fazer sentir culpa. Olho o relógio, queria poder reiniciá-lo, mas não dá. Deixei você brincar demais comigo.
O dia está amanhecendo e já consigo me sentir menos tolo. Antes de terminar quero agradecer. Graças a você descobri que a minha maior qualidade também é o meu maior defeito, e a partir de hoje deixo de me importar.
Vou lhe deixar em paz, tão em paz que realmente quero que sinta saudades do anel que tinha entre seus dedos, por mais que o julgasse uma mera bijuteria.


Seja Feliz!

(...)

Debruçou-se sobre a mesa, chorou até soluçar, sentiu a mão muito leve. Talvez nem pudesse controlá-la mais...

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Gafes


Viajou para a praia junto com outras três amigas. Passearam, beberam, fizeram novas amizades, conheceram muitos rapazes. Dentre eles guardou o nome e telefone de um em especial, pois ele morava na mesma cidade em que ela acabara de se mudar e ainda não conhecia praticamente nada. A viajem chegou ao fim, cada amiga seguiu o seu rumo.
Estava em casa num final de semana quando comentou com a irmã sobre o tal moço da praia.
- O nome dele é Lúcio. Muito educado, simpático, inteligente, não é lindo, lindo, mas todo esse conjunto de qualidades o deixa muito bonito.
- Então por quê não liga para ele como quem não quer nada? Se ele é tão gente boa assim, será uma ótima pessoa para te apresentar a cidade e te distrair um pouco.
- Você tem razão. Vou ligar agora mesmo.
Procurou o número do rapaz na agenda e ligou.
- Pronto?
- Olá! Gostaria de falar com o Lúcio.
- É ele quem está falando.
- Lúcio, desculpa! Não reconheci a sua voz. É a Fabiana, da praia, lembra?
- Nossa! Claro que lembro. Achei que nem tinha meu telefone mais. Tudo bem contigo?
- Tenho sim. Está tudo bem, ou melhor, mais ou menos. Lembra que te falei que mudei pra cá há pouco tempo e ainda não conheço nada nem ninguém?
- Lembro sim. Então vou te convidar para dar uma volta comigo, vamos sair para jantar e pelo caminho te mostro os principais pontos da cidade. Pode ser?
- Seria ótimo!
Ficou imensamente feliz por ele mesmo ter se oferecido para sair, estava com medo de que já tivesse compromisso ou não fosse tão simpático quanto havia sido quando se conheceram. Combinaram o horário, explicou o endereço para o rapaz que se dispôs a buscá-la em casa como um verdadeiro cavalheiro.
Durante o caminho para o restaurante foi mostrando praças, monumentos, shoppings, boates, bares, supermercados, condomínios, farmácias, hospitais, e tudo mais que julgava necessário uma pessoa saber onde fica para sobreviver numa cidade grande.
Chegaram a um restaurante chique que pelo o que ela pôde perceber era um dos pontos mais badalados da região. Desceram do carro e um manobrista pegou a chave para estacioná-lo. Restaurante chique, manobrista, começou a pensar “Meu Deus do céu, onde é que eu vim parar? Se aqui fora é assim imagina lá dentro!”.
Havia acabado de se mudar de uma cidade pequena, tinha um gosto um tanto quanto interiorano. Estava vestida de forma simples. Arrumadinha, porém simples. Usava uma bata, calça jeans, botas e uma bolsa de couro cheia de franjas. Quem olhava percebia logo de cara um estilo meio hippie. Já ele estava usando uma calça social, uma camisa, um blazer e sapatos também socais. Formavam um casal contrastante.
No restaurante um pianista tocava enquanto as pessoas apreciavam a comida feita pelo chefe de cozinha francês. Os freqüentadores muito bem trajados, mulheres em sua maioria com seus belos vestidos longos e homens engravatados.
Chamou atenção além do traje, o barulho que as botas fizeram no assoalho de madeira do restaurante. Um barulho abafado, do tipo toc, toc, toc, que atrapalhou por alguns segundos a doçura das notas musicais do piano.
O garçom se aproximou da mesa e perguntou:
- Posso trazer a carta de vinhos, senhor?
- Pode sim, obrigado!
Perguntou a ela:
- Prefere vinho tinto seco ou suave?
Tinto seco ou suave? Preferia que ele mesmo escolhesse para evitar gafes.
- Escolha você. Confio no seu gosto.
Escolheu um vinho tinto suave, apesar de preferir o tinto seco. Leu em uma revista que mesmo o vinho suave sendo o restolho do suco que a uva pode oferecer, era acrescido de açúcar, tornando-se palatável para a maioria das mulheres.
- E de entrada, os senhores gostariam de quê?
- Traga uma tábua de frios por enquanto.
Ficou aliviada por ele não ter pedido sua opinião para escolher a comida, aquele não era o tipo de lugar em que se grita “Garçom, meu amigão, traz um P.F ai!”.
Conversaram enquanto a entrada não chegava, ela falou de seus planos, ele falou que estava começando a cuidar dos negócios do pai, enfim falaram da vida. Foi quando ela avistou o garçom com um carrinho para servi-los. A tábua de frios, o vinho, tudo sendo empurrado naquele carrinho que só tinha visto em filmes.
Peito de chester defumado fatiado, lombinho canadense, salame, queijo prato fino, azeitonas pretas, verdes, dentre outras coisas que nenhum dos dois conseguiu identificar.
Queria comer uma azeitona, mas não sabia o que fazer com o caroço, até que ele comeu uma e discretamente tirou o caroço da boca com a mão colocando-o no guardanapo. Percebeu que não era tão complicado como havia imaginado e continuou observando-o atentamente. Acalmou-se. Pediram o prato principal, pediram a sobremesa, pediram a conta e ele pagou. Antes de ir embora foram ao banheiro.
Ela entrou no banheiro, fechou a portinha e quando foi sair não conseguia abri-la. Começou a ficar apavorada, com certeza ele já tinha saído do banheiro e estava a esperando para irem embora. Subiu no vaso sanitário, olhou de um lado, olhou do outro, nenhuma alma viva para socorrê-la. Pensou em gritar, mas logo desistiu da idéia, seria muita vergonha para Lúcio passar. Tomou coragem e se jogou estatelando-se no chão do banheiro. Levantou rapidamente, deu uma breve ajeitada no cabelo e saiu como se nada tivesse acontecido.
- Tudo bem?
- Tudo ótimo! Vamos?
- Vamos! É que você demorou pensei que talvez pudesse estar passando mal, sei lá.
- Não, não. Tive um probleminha com o trinco da porta, nada demais.
Levou-a para casa. Ela agradeceu o jantar e ele disse:
- Espero que possamos repetir a noite.
- Claro! Vamos combinar de sair mais vezes.
- Ótimo! Agora que já conhece um pouco melhor a cidade você escolherá o lugar na próxima vez.
Deu uma risada e disse:
- Combinadíssimo!
Sentiu um imenso alívio pensando “Da próxima vez vamos comer um X-burguer!”.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Felipe: o peixe e o engenheiro


Colocou o fone de ouvido, não queria ouvir ninguém. Tanta gente reclamando, falando de seus casamentos fracassados, de seus empregos chatos, de seus parentes em estado terminal, de suas vidas problemáticas. Ficou na sala, com o fone no volume máximo, andando de um lado para o outro.
Olhou pela janela do apartamento da tia, enquanto os demais continuavam interagindo em mais uma típica reunião de família, daquelas que só acabam quando algum podre vem à tona, como por exemplo: alguém que dá em cima de quem não deveria, alguém que descobre uma traição, alguém que bebe demais e resolve sair do armário, entre outros fatos.
Ligou a televisão e nenhum canal oferecia algo digno de sua atenção. Foi ao quarto da prima que estava deitada na cama falando com o Pedro, ou seria o Lucas, Leonardo...quem saberia dizer? Ela trocava de namorado com muita freqüência, era mais fácil gravar os nomes dos jogadores da seleção japonesa do que o dos namorados.
Do quarto da prima, foi para a cozinha, fez um lanche que o manteve ocupado por cerca de uns vinte minutos. O tempo parecia não passar.
Procurou na biblioteca da tia algo para ler e que o mantivesse ocupado, porém só viu livros do curso de Direito que ela havia feito há uns mil anos.
Avisou que desceria para a sala de jogos do prédio.
Uma mesa de sinuca sem ninguém jogando e umas mesas para jogar baralho. Sempre odiou baralho, perdia todas as partidas.
Foi até a piscina, só viu crianças. Não adiantaria tentar puxar assunto com uma delas, no máximo lhe jogariam água e completariam dizendo que haviam urinado nela. Mas percebeu que uma delas não estava brincando com as outras, estava sentada num montinho de areia sozinha.
Foi se aproximando lentamente. Crianças são como animais, elas se espantam facilmente, só que diferente deles, elas iniciam um berreiro e uma mãe furiosa vem saber o que você fez com o pimpolho dela.
- Por quê não brinca com as outras crianças?
- Pelo mesmo motivo que você não está na sua chata reunião de família.
Ficou espantado com a resposta. Como uma criança poderia rebater uma pergunta com tamanha maestria?
- Como sabe que estou fugindo de uma reunião chata?
- O apartamento dos meus pais é em frente ao da sua tia, dá para ouvir tudo.
- Como sabe que ela é minha tia?
- Bem, ela vive andando aqui pelo prédio dizendo que o jovem sobrinho engenheiro dela poderia dar um jeito na obra mal concluída do salão de festas. Você veio no carro de uma empresa de construção civil, então conclui que você é o sobrinho dela.
- Meu Deus, você é muito inteligente! Engenheiro, construção civil...liga os fatos muito bem, espertíssima para sua idade.
Ela deu de ombros como que não ligando para o elogio.
- São seis anos bem aproveitados, só isso.
- Realmente. Com seis anos a coisa mais fantástica que conseguia fazer era subir numa árvore, cair e quebrar o braço.
Ela deu uma risadinha.
- Já sabe o que quer ser quando crescer?
- Todo adulto tem mania de perguntar isso né?! Por enquanto eu digo que não sei. O bobão do meu irmão foi dizer que queria ser médico e agora meu pai quer que ele realmente seja.
- Está certa, vai ter muito tempo para pensar nisso. E animais de estimação você tem algum?
- Tive um peixe. Minha mãe não gosta de cães porque latem, de gatos porque miam, de pássaros porque cantam, ai me deu um peixe. Eles só nadam.
O rapaz deu uma risada.
- Você já vai à escola?
- Vou sim. Mas não gosto muito, nessa idade subestimam a capacidade infantil. Nós só ficamos pintando desenhos para treinar a coordenação motora e depois já é hora da soneca.
Não se conteve e teve de rir mais uma vez, estava encantado com a inteligência da menininha. Com certeza ela era a melhor pessoa para mantê-lo ocupado naquele lugar.
- Você tem cara de quem não gosta de crianças.
- Não é que eu não goste, elas é que parecem não se entender comigo. Quase sempre me deixam com hematomas.
- Entendo.
Percebeu que ela colocava a areia no baldinho para tentar construir um castelo.
- Quer ajuda com o castelo de areia?
- Você é engenheiro de castelinho de areia também?
- Vamos descobrir agora.
Dobrou as mangas da camisa, e entrou no cercadinho. Completou o balde com areia, molhou-a para que adquirisse firmeza e o virou com a boca para baixo.
- Acha que vai ficar bonito mesmo antes de ver?
- Acho que sim. Você parece ser confiável.
- Então vamos lá.
Ergueu o balde e o castelo saiu inteirinho. Era dos castelos de areia o mais simples possível. Pegou um galho de árvore pequeno, rasgou um pedaço do lenço vermelho que estava no bolso de trás da calça, amarrou no galho. Agora o castelo tinha uma bandeira.
- Ficou muito bonito. É uma pena que ele não vai resistir para sempre.
- Não tem problema. Guarde apenas na memória. Sem falar que podemos fazer outros ainda melhores.
Ela fez que sim com a cabeça. Os dois ouviram um grito:
- Carolina, venha se arrumar! Nós vamos passear.
- Estou indo!
- Então você se chama Carolina? Bonito nome.
- Obrigada! E o seu como é?
- É Felipe.
- Que legal! Não vou esquecer nunca mais.
- Por quê?
- O meu peixe se chamava Felipe.
E o tempo voltou a passar lentamente para Felipe, o peixe engenheiro.

Telefonema


Trancou-se em casa, no quarto, em si mesmo. Tornou-se tão calado que às vezes lia alguma coisa em voz alta para certificar-se de não tê-la perdido. Durante uma madrugada, resolveu testar a voz ligando para o primeiro número que lhe viesse à cabeça. Discou e durante o intervalo entre um toque e outro, arrependia-se.
Uma voz de mulher atendeu.
- Alô?
Quis desligar devido à vergonha. Quis, mas não o fez e foi logo dizendo:
- Você não me conhece, liguei para o primeiro número no qual pensei. Foi burrice minha. Desculpe!
- Tudo bem, está desculpado. Mas agora que me acordou fale o que quiser. Quero saber o que te fez perder o sono e pensar justamente na combinação de números do meu telefone. Quem sabe isso não é um sinal?
- Só se for um sinal de que você não teve muita sorte com a combinação fornecida por sua operadora. Ou ainda, de que sou uma negação da existência humana e gosto de incomodar desconhecidos.
- Então, negação da existência humana, sou o seu provável anjo da guarda está noite. Escolha uma das opções: continuar na linha e conversar com o anjo, ou desligar e voltar para o menu da sua vida solitária.
Calou-se, esperava qualquer tipo de reação de alguém que atendesse a um telefonema naquele horário, menos uma bem humorada.
- Você parece ser engraçada.
- Tento ser. Enquanto a maioria opta por ver só o lado ruim, tento ser diferente procurando meio as cegas um provável lado bom.
- Também já fui diferente, mas com o tempo você se transforma, vai sendo moldado e acaba ficando como a maioria. O mundo é uma fábrica com produção em massa e artefatos em série.
- Decepcionou-se, negação da existência humana?
Ele esboçou um sorriso tímido, porém perceptível.
- Comecei a entender como as coisas funcionam.
- Quer compartilhar para que eu também entenda?
- Acho que não é uma boa idéia. Não quero fazer mal a você.
- Não irá fazer. Não te dei poder para isso.
Espantou-se com a personalidade com a qual havia se deparado.
- Ótimo! Assim me tranqüilizo por prejudicar só a mim mesmo com essa teoria.
- Vamos a ela então.
- Quer saber se uma relação é falsa, anjo da guarda? Dê um tempo!
- Dar um tempo?
- Exatamente. Dê um tempo! Não ligue, não procure, controle seus impulsos de visitas surpresas, viaje...suma!
- Certo. Sumi! E agora o que acontece?
- Nada!
- Como assim nada? Fiquei confusa agora.
- Não acontece nada. Não te ligam, não te procuram, não te visitam, não viajam atrás de você...somem!
Ela começou a entender.
- Quer dizer que está incomodado com o quanto as pessoas podem ser frias, falsas, egoístas, mesquinhas, e imbecis?
- Estou incomodado por ter descoberto o quão descartável sou.
- Por quê não trocamos o seu descartável por reciclável?
- Você é ecologicamente correta? Trabalha em alguma ONG que recicle seres humanos?
Não resistiu e continuou a brincadeira.
- Sou ecológica e emocionalmente correta. Já ajudei a dar banho em aves afetadas por derramamento de petróleo. Não sei se você sabe, mas elas não conseguem voar com as asas impregnadas de óleo.
Do outro lado da linha ele soltou uma gargalhada, há tempos não dava uma.
- Acho que reciclei a sua noite pelo menos.
- Pode ter certeza que sim. Quando disquei o seu número, disquei por discar, não o anotei. Pensei que provavelmente ouviria um palavrão.
- O seu ficou gravado no meu identificador de chamadas.
Sorriu, finalizou a conversa, despediu-se.
Sabia que logo, logo, alguém ligaria, procuraria, faria uma visita surpresa, viajaria atrás dele e que nunca, nunca sumiria. Alguém diferente, assim como ela mesma se definiu: emocionalmente correta.