quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Felipe: o peixe e o engenheiro


Colocou o fone de ouvido, não queria ouvir ninguém. Tanta gente reclamando, falando de seus casamentos fracassados, de seus empregos chatos, de seus parentes em estado terminal, de suas vidas problemáticas. Ficou na sala, com o fone no volume máximo, andando de um lado para o outro.
Olhou pela janela do apartamento da tia, enquanto os demais continuavam interagindo em mais uma típica reunião de família, daquelas que só acabam quando algum podre vem à tona, como por exemplo: alguém que dá em cima de quem não deveria, alguém que descobre uma traição, alguém que bebe demais e resolve sair do armário, entre outros fatos.
Ligou a televisão e nenhum canal oferecia algo digno de sua atenção. Foi ao quarto da prima que estava deitada na cama falando com o Pedro, ou seria o Lucas, Leonardo...quem saberia dizer? Ela trocava de namorado com muita freqüência, era mais fácil gravar os nomes dos jogadores da seleção japonesa do que o dos namorados.
Do quarto da prima, foi para a cozinha, fez um lanche que o manteve ocupado por cerca de uns vinte minutos. O tempo parecia não passar.
Procurou na biblioteca da tia algo para ler e que o mantivesse ocupado, porém só viu livros do curso de Direito que ela havia feito há uns mil anos.
Avisou que desceria para a sala de jogos do prédio.
Uma mesa de sinuca sem ninguém jogando e umas mesas para jogar baralho. Sempre odiou baralho, perdia todas as partidas.
Foi até a piscina, só viu crianças. Não adiantaria tentar puxar assunto com uma delas, no máximo lhe jogariam água e completariam dizendo que haviam urinado nela. Mas percebeu que uma delas não estava brincando com as outras, estava sentada num montinho de areia sozinha.
Foi se aproximando lentamente. Crianças são como animais, elas se espantam facilmente, só que diferente deles, elas iniciam um berreiro e uma mãe furiosa vem saber o que você fez com o pimpolho dela.
- Por quê não brinca com as outras crianças?
- Pelo mesmo motivo que você não está na sua chata reunião de família.
Ficou espantado com a resposta. Como uma criança poderia rebater uma pergunta com tamanha maestria?
- Como sabe que estou fugindo de uma reunião chata?
- O apartamento dos meus pais é em frente ao da sua tia, dá para ouvir tudo.
- Como sabe que ela é minha tia?
- Bem, ela vive andando aqui pelo prédio dizendo que o jovem sobrinho engenheiro dela poderia dar um jeito na obra mal concluída do salão de festas. Você veio no carro de uma empresa de construção civil, então conclui que você é o sobrinho dela.
- Meu Deus, você é muito inteligente! Engenheiro, construção civil...liga os fatos muito bem, espertíssima para sua idade.
Ela deu de ombros como que não ligando para o elogio.
- São seis anos bem aproveitados, só isso.
- Realmente. Com seis anos a coisa mais fantástica que conseguia fazer era subir numa árvore, cair e quebrar o braço.
Ela deu uma risadinha.
- Já sabe o que quer ser quando crescer?
- Todo adulto tem mania de perguntar isso né?! Por enquanto eu digo que não sei. O bobão do meu irmão foi dizer que queria ser médico e agora meu pai quer que ele realmente seja.
- Está certa, vai ter muito tempo para pensar nisso. E animais de estimação você tem algum?
- Tive um peixe. Minha mãe não gosta de cães porque latem, de gatos porque miam, de pássaros porque cantam, ai me deu um peixe. Eles só nadam.
O rapaz deu uma risada.
- Você já vai à escola?
- Vou sim. Mas não gosto muito, nessa idade subestimam a capacidade infantil. Nós só ficamos pintando desenhos para treinar a coordenação motora e depois já é hora da soneca.
Não se conteve e teve de rir mais uma vez, estava encantado com a inteligência da menininha. Com certeza ela era a melhor pessoa para mantê-lo ocupado naquele lugar.
- Você tem cara de quem não gosta de crianças.
- Não é que eu não goste, elas é que parecem não se entender comigo. Quase sempre me deixam com hematomas.
- Entendo.
Percebeu que ela colocava a areia no baldinho para tentar construir um castelo.
- Quer ajuda com o castelo de areia?
- Você é engenheiro de castelinho de areia também?
- Vamos descobrir agora.
Dobrou as mangas da camisa, e entrou no cercadinho. Completou o balde com areia, molhou-a para que adquirisse firmeza e o virou com a boca para baixo.
- Acha que vai ficar bonito mesmo antes de ver?
- Acho que sim. Você parece ser confiável.
- Então vamos lá.
Ergueu o balde e o castelo saiu inteirinho. Era dos castelos de areia o mais simples possível. Pegou um galho de árvore pequeno, rasgou um pedaço do lenço vermelho que estava no bolso de trás da calça, amarrou no galho. Agora o castelo tinha uma bandeira.
- Ficou muito bonito. É uma pena que ele não vai resistir para sempre.
- Não tem problema. Guarde apenas na memória. Sem falar que podemos fazer outros ainda melhores.
Ela fez que sim com a cabeça. Os dois ouviram um grito:
- Carolina, venha se arrumar! Nós vamos passear.
- Estou indo!
- Então você se chama Carolina? Bonito nome.
- Obrigada! E o seu como é?
- É Felipe.
- Que legal! Não vou esquecer nunca mais.
- Por quê?
- O meu peixe se chamava Felipe.
E o tempo voltou a passar lentamente para Felipe, o peixe engenheiro.

4 comentários:

  1. Só você mesmo Naty, como consegue fazer uma criança de 6 anos ser tão legal?! hahahaha. Incrivel!

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  2. Ah que nada! Só lembrei de mim mesma na infância, hehe!
    Brincadeirinha!

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  3. Natália, você já publicou algum livro? Se não, pensa em publicar? Acho você uma escritora de mão cheia (acho que já falei isso outras vezes, né?)... Desculpe pela redundância, mas seu talento me deixa de queixo caído... Parabéns!
    Amo o seu trabalho!!!

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  4. Não, não, nunca publiquei nada. Quem sabe um dia...nunca se sabe, não é?
    Fico muito lisonjeada com os elogios, vou acabar ficando até convencida, hehe!
    Muito obrigada!

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