quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Telefonema


Trancou-se em casa, no quarto, em si mesmo. Tornou-se tão calado que às vezes lia alguma coisa em voz alta para certificar-se de não tê-la perdido. Durante uma madrugada, resolveu testar a voz ligando para o primeiro número que lhe viesse à cabeça. Discou e durante o intervalo entre um toque e outro, arrependia-se.
Uma voz de mulher atendeu.
- Alô?
Quis desligar devido à vergonha. Quis, mas não o fez e foi logo dizendo:
- Você não me conhece, liguei para o primeiro número no qual pensei. Foi burrice minha. Desculpe!
- Tudo bem, está desculpado. Mas agora que me acordou fale o que quiser. Quero saber o que te fez perder o sono e pensar justamente na combinação de números do meu telefone. Quem sabe isso não é um sinal?
- Só se for um sinal de que você não teve muita sorte com a combinação fornecida por sua operadora. Ou ainda, de que sou uma negação da existência humana e gosto de incomodar desconhecidos.
- Então, negação da existência humana, sou o seu provável anjo da guarda está noite. Escolha uma das opções: continuar na linha e conversar com o anjo, ou desligar e voltar para o menu da sua vida solitária.
Calou-se, esperava qualquer tipo de reação de alguém que atendesse a um telefonema naquele horário, menos uma bem humorada.
- Você parece ser engraçada.
- Tento ser. Enquanto a maioria opta por ver só o lado ruim, tento ser diferente procurando meio as cegas um provável lado bom.
- Também já fui diferente, mas com o tempo você se transforma, vai sendo moldado e acaba ficando como a maioria. O mundo é uma fábrica com produção em massa e artefatos em série.
- Decepcionou-se, negação da existência humana?
Ele esboçou um sorriso tímido, porém perceptível.
- Comecei a entender como as coisas funcionam.
- Quer compartilhar para que eu também entenda?
- Acho que não é uma boa idéia. Não quero fazer mal a você.
- Não irá fazer. Não te dei poder para isso.
Espantou-se com a personalidade com a qual havia se deparado.
- Ótimo! Assim me tranqüilizo por prejudicar só a mim mesmo com essa teoria.
- Vamos a ela então.
- Quer saber se uma relação é falsa, anjo da guarda? Dê um tempo!
- Dar um tempo?
- Exatamente. Dê um tempo! Não ligue, não procure, controle seus impulsos de visitas surpresas, viaje...suma!
- Certo. Sumi! E agora o que acontece?
- Nada!
- Como assim nada? Fiquei confusa agora.
- Não acontece nada. Não te ligam, não te procuram, não te visitam, não viajam atrás de você...somem!
Ela começou a entender.
- Quer dizer que está incomodado com o quanto as pessoas podem ser frias, falsas, egoístas, mesquinhas, e imbecis?
- Estou incomodado por ter descoberto o quão descartável sou.
- Por quê não trocamos o seu descartável por reciclável?
- Você é ecologicamente correta? Trabalha em alguma ONG que recicle seres humanos?
Não resistiu e continuou a brincadeira.
- Sou ecológica e emocionalmente correta. Já ajudei a dar banho em aves afetadas por derramamento de petróleo. Não sei se você sabe, mas elas não conseguem voar com as asas impregnadas de óleo.
Do outro lado da linha ele soltou uma gargalhada, há tempos não dava uma.
- Acho que reciclei a sua noite pelo menos.
- Pode ter certeza que sim. Quando disquei o seu número, disquei por discar, não o anotei. Pensei que provavelmente ouviria um palavrão.
- O seu ficou gravado no meu identificador de chamadas.
Sorriu, finalizou a conversa, despediu-se.
Sabia que logo, logo, alguém ligaria, procuraria, faria uma visita surpresa, viajaria atrás dele e que nunca, nunca sumiria. Alguém diferente, assim como ela mesma se definiu: emocionalmente correta.

2 comentários:

  1. Maravilhoso. Estava com saudades destes textos incríveis que você escreve. Amenizou um pouco a tristeza que estou sentindo neste momento... Obrigado.

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  2. Ah, é bom ler seus textos outra vez! Esse telefone foi bem inusitado !!
    " O mundo é uma fábrica com produção em massa e artefatos em série."

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