quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Tarde no parque


Era o último dia do melhor amigo na cidade. Resolveu pegar o carro, passar em sua casa sem avisar e levá-lo para dar uma volta. No fundo queria mesmo era conversar, lamuriar sua partida com ele mesmo.
- Odeio esses CDs bregas que você deixa no carro.
- Brega? Só porque a música tem uma letra bonita, uma melodia bem composta, e acaba te deixando reflexivo, você diz que é brega?
Estava feliz por ela estar dirigindo, assim não podia fitá-lo diretamente nos olhos.
- Exato. Não gosto porque me deixa reflexivo. Você podia colocar um CD em russo, japonês, aramaico, qualquer língua que eu não entenda, evitando que eu perca o sono mais tarde.
Ela começou a dar risada.
- Tá rindo de quê?
- De você oras. Você vai embora amanhã, não vai para sempre porque isso é muito tempo, além de ser incalculável, e fica ai todo mal humorado ao invés de conversar comigo, me contar seus novos planos, suas metas futuras, essas besteiras todas.
- Não ando fazendo muitos planos. Quem faz planos espera que o futuro os realize, eu prefiro saber onde estou pisando.
- Ok! Não está mais aqui quem falou.
Chegaram ao parque. Era o parque mais bonito da cidade, o único em que o canto de um pássaro superava os decibéis do trânsito caótico da cidade.
- Pense pelo lado bom, lá você não vai enfrentar congestionamentos e nem intoxicar o seu pulmão logo pela manhã.
- É...talvez lá eu nem precise de carro, uma bicicleta e já está tudo ótimo, manterei a forma sem gastar com as caras academias do interior.
Pararam em frente ao lago do parque. Ele comprou água de coco para os dois.
- Sabe o que água de coco me lembra?
- Praia?
- É! Como sabia?
- Não sabia. Foi a associação mais lógica que me veio a cabeça.
- Se soubesse que era bom com adivinhações não teria consultado aquela cartomante ridícula durante aquela nossa viagem.
Ele se lembrou da cartomante, uma velha gorda, com um lenço vermelho na cabeça, o braço coberto de pulseiras, os dentes amarelos, e quase se engasgou de tanto rir, dizendo:
- Lembra quando ela falou que você iria ser mãe de uma menininha e você reclamou dizendo que preferia um menino? Prontamente ela juntou as cartas do tarô e falou: melhor abrir o baralho de novo, vai ser menino, vai ser menino!
- Como lembro. Nem menino e nem menina. Olha eu aqui mantendo o corpinho de solteira. Se bem que eu vou ser uma mãe sexy.
Os dois eram amigos de longa data, se conheceram durante o ensino médio, passaram na mesma faculdade para cursos diferentes, mas durante os intervalos das aulas não socializavam muito com os colegas de turma, preferiam ficar juntos. Ele freqüentava as festas na casa dela. Ela adorava a família dele, eram todos calorosos e receptivos. O fato é, que eles sabiam tudo um do outro, era uma relação clara, mais que clara, transparente.
Cansou de receber telefonemas da mãe dela dizendo que a filha tinha terminado o namoro, estava sentada na escada de entrada da casa, com um vestido de festa e os olhos borrados de rímel parecendo um panda de tanto chorar. Já ela perdeu as contas de quantas vezes teve de ir ao apartamento dele para fazer uma limpeza na geladeira, onde podia-se encontrar tudo, menos algo comestível, também tirava a roupa da máquina de lavar, ele nunca se lembrava disso, só quando se deparava com o guarda-roupa vazio.
- Vou sentir muito a sua falta.
- Vai mesmo. Quem em sã consciência vai ter coragem de sair juntando a sua bagunça sem ser muito bem paga?
- A maioria das pessoas que conheço são capazes de enxergar os meus momentos de sofrimento, mas você é a única que além deles vê também os meus êxitos.
Ela ficou meio sem graça, não estava acostumada a receber elogios tão puros.
- Fui te buscar para dar uma volta, refrescar as idéias, mas essa conversa está com um tom muito fúnebre, muito despedida.
- Está certíssima. Chega de ficar falando do que aconteceu.
- Isso! Vamos falar do que provavelmente vai acontecer por lá. Vê se lembra do que eu sempre falo: todos são maravilhosos até o momento em que ainda não os conhecemos bem.
Voltou a rir. Ela arrancava um sorriso dele sem fazer muito esforço. Calmamente foram tomando o rumo do estacionamento.
- Essa sua versão é boa, mas eu já conheci gente que foi ficando cada vez mais maravilhosa com a convivência.
- Ah é?! Apresente-me esse ser estupendo algum dia.
- Não seja por isso. Olha o seu reflexo ali no vidro do carro.

Fatia



Saiu de casa para trabalhar, chegou ao escritório, cumprimentou quem sempre costumava cumprimentá-lo e pensou em voz alta:
- Hoje o dia vai demorar para acabar.
Andava meio abatido. A esposa estava doente, algum tipo de câncer, comentavam os colegas de repartição, e o filho adolescente estava atravessando a enésima crise dessa típica idade.
Trabalhava no décimo andar, sua mesa ficava ao lado da janela. Agradecia muito a posição favorável, pois enquanto no escritório as pessoas se repetiam nas mesmas situações, na rua eram as situações que se repetiam com diferentes pessoas.
Na hora do almoço comia sossegado. Seu dentista lhe disse:
- Não sei quantas mastigadas de um lado, não sei quantas mastigadas do outro.
Claro que o dentista usou um número mais preciso.
A tarde para ele era a pior parte do dia. O sol invadia a repartição. Justamente o símbolo da felicidade, o astro-rei que tempos atrás lhe dissolvia o cansaço, agora o fazia pensar:
- Maldito calor! Toda essa exposição ao sol ainda irá me reservar surpresas futuras como um melanoma.
Sob a mesa, ao lado do computador havia uma foto antiga da família toda. Gostava muito de fotografias, sempre dizia:
- Fotos são lembranças que podem ser tocadas, são úteis quando nossa memória já não retém mais informações.
Levantou-se, foi tomar um café. Gostava do café forte, daqueles bem amargos. Se a vida é amarga que comecemos logo pelo café.
O expediente acabou. Dois ou três colegas o convidaram para tomar uma cerveja num bar vagabundo, onde só se pode consumir aquilo que já vem lacrado de fábrica. Obviamente recusou o convite, alegando que precisava chegar cedo em casa.
Desceu do metrô, caminhava tranqüilo, naqueles dias estava anoitecendo muito rápido. Passou em frente a uma padaria e resolveu fazer um agrado pessoal. Entrou para comer um pedaço de pudim, desde criança sempre adorou pudim de padaria. Fez o pedido, sentou-se, ficou esperando.
De repente entram na padaria três pessoas. Um homem, uma mulher e um menino de no máximo uns oito anos de idade. Aparentavam ser uma família pobre.
O garoto foi até o balcão e pediu alguma coisa a simpática funcionária do estabelecimento. A moça cortou um pedaço do bolo de chocolate, colocou num pratinho e levou até a mesa dos três.
Um pedaço de bolo para comemorar o aniversário daquela criança, compreendeu. Um pedaço de bolo que naquele instante representava a felicidade dessas três pessoas. Sentiu-se envergonhando por andar se lamentando tanto, por querer guardar angústias em potes para consumi-las sempre que julgasse necessário.
Seu pedido chegou. Comeu sem tirar os olhos daquelas criaturas. Parecia agora, que não só o café, mas também o pudim estava amargo. Não sentia o mesmo prazer em degustá-lo como quando na infância.
Os olhos ficaram úmidos, sentiu uma quase incontrolável vontade de chorar. Estava começando a entender o valor de uma fatia de bolo.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Diálogos metalinguísticos


Marcaram de sair. Eram nada mais nada menos que dois amigos. Melhor nem dizer assim. Estavam naquela fase de transição entre conhecidos, amigos, e uma futura relação. Fosse ela de qualquer tipo.
Quando ainda não se tem ou ainda não se descobriram muitas afinidades a conversa segue um ritmo um tanto quanto metalingüístico, no qual falar do que acabaram de falar torna-se momentaneamente ocupante, até que o álcool contribua para a liberação das idéias, pensamentos e desejos, digamos mais íntimos.
Minutos depois o álcool realmente resolveu participar da conversa, que agora era mais descontraída e os dois já falavam de si mesmos sem constrangimentos. Mostrariam fotos ridículas da infância se as tivessem ali naquele exato momento.
- Por que você acha que é tão difícil entrar num relacionamento?
- Não, eu não acho que seja difícil entrar. Nem entrar nem sair. Difícil é mantê-lo.
- E é difícil mantê-lo...
Não o deixou concluir a frase, interrompendo:
- É difícil mantê-lo porque nós pessoas, temos sempre a sensação de dar muito e receber pouco, temos mania de ficar esperando sempre mais do que o outro pode nos oferecer.
- Você espera tanto assim em uma relação?
- Eu minto que não fantasio, quando na verdade isso é o que mais faço.
- Nossa! Você não deve ser uma pessoa fácil de se envolver.
- Não sou e acho que ninguém é. Quem diz ser, está enfrentando alguma grave crise de carência e precisa ser amparado urgentemente.
- Concordo com você. O fato é que pessoas trazem uma bagagem própria. Difícil conviver com manias e problemas nossos, imagine com os dos outros.
- Tem toda razão. Exatamente por isso ando meio adepta da teoria do posso ter dias lindos, mesmo sozinha.
- Mas você sabe que tem gente que complica tudo. Quero dizer, complica mais que o necessário.
- Talvez não compliquem, talvez apenas não facilitem. Esse negócio de ficar se encantando dá muito trabalho, você constrói todas as suas fantasias e de repente elas são demolidas num sábado à noite em que um de vocês dois não soube dizer não na hora certa.
O garçom veio até a mesa e perguntou se precisavam de mais alguma coisa. Os dois estavam tão envolvidos na conversa, que só lembraram mesmo foi de pedir outra garrafa de vinho. Ela retomou o assunto:
- Mesmo correndo risco de ter os sentimentos despedaçados, acredito que realmente devemos nos envolver com alguém. Afinal, não podemos nos afastar de todo mundo e acabar tendo de checar o gancho do telefone para ter certeza de que a linha não foi cortada, mas sim as pessoas que te cortaram de suas vidas.
- Profundo isso que você disse. Poesia pura.
- Elogiar alterado não conta, engraçadinho.
- Sinceramente, acho que quem nunca amou de verdade tem uma capacidade muito maior de dar nomes aos sentimentos do que as que estão amando. Resumem tudo numa única palavra: gosto.
- Espero que na segunda-feira não revelemos toda essa nossa dependência.
Os dois riram, ficaram calados observando o movimento, quando ele retomou:
- Já te disseram que manda na relação quem se envolve menos?
- Disseram sim. Eu gostaria de me envolver menos e poder manter o controle de tudo.
Voltaram a rir. Ele aparentou certa dose de nervosismo.
- Você me deixa constrangido e quando eu fico assim sempre preciso de alguma coisa para segurar.
Ela sorriu dizendo:
- A minha mão está em cima da mesa há um bom tempo...

Conto de Ano Novo


- Estou chegando a uma conclusão.
- Conclusão de quê?
- Não faço idéia, estou bêbado demais para concluir e ainda ter que te explicar.
- Pois eu acho que você anda me tratando como um cigarro.
- Como um cigarro? Como assim? Explique-se melhor.
- Procura quando precisa, acende o meu fogo, fica meio bobão, chapadão, depois me apaga no seu cinzeiro vagabundo, me esmaga e assopra as cinzas.
- Caramba! Eu faço tão mal assim para você?
- Ultimamente anda fazendo sim. Lembra daquele período das nossas vidas que nos afastamos devido aos nossos sentimentos arraigados?
- Claro que me lembro, foi a época que eu mais sofri, não suportava ficar longe de você.
- Pois então, essa época que nós ficamos afastados foi boa.
- Saber que eu sofria por você é bom?
- Não, idiota! Foi nessa época que nós descobrimos que fazíamos falta um para o outro e que nossas presenças nos confortavam.
- Ah sim. Eu prometi a Deus que tentaria me apaixonar de verdade, e cá estamos nós.
- Não sabia dessa sua promessa.
- Eu posso até te fazer mal, mas mesmo assim continuo romântico.
- Verdade. Romântico do tipo que acaba de fazer amor e nem pergunta “e ai meu bem foi bom para você?”
- (Risos) Perguntei uma vez e você titubeou ao responder. Nós homens não gostamos de ser comparados com outros caras que vocês mulheres porventura já utilizaram como brinquedinho sexual.
- Engraçado você colocar a sua classe numa prateleira de sex shop.
- Nesse mundo estamos todos à venda, a única diferença é que não andamos com nosso preço pregado em uma etiqueta a vista, está mais para uma etiqueta de caráter mental.
- (Colocando o resto de vinho na taça) Você tem razão, estamos todos à venda, uns na parte da liquidação, outros a preços exorbitantes.
- Me achou na liquidação ou na sessão dos exorbitantes?
- (Risos) Te achei num bazar, você estava mais para o tipo, compre cinco e pague três.
- Até hoje eu tenho uma dúvida.
- Qual?
- Se me apaixonei por você ou pelo seu sarcasmo.
...
Os dois riram, continuaram a conversar durante um curto intervalo de tempo e depois adormeceram. Quando acordaram já era Ano Novo.

Remetente da saudade


Puxou a cadeira, aproximou-se da mesa para começar a escrever uma nova carta. Dentro das gavetas de sua escrivaninha havia pilhas de envelopes. Escrevia sempre se perguntando:
- Com tantas pessoas no mundo por que justamente eu tinha que me importar?
Sem resposta concreta e com algumas conclusões vagas continuava escrevendo.
Tinha uma memória ótima, o que às vezes lhe desagradava por ser um dos poucos a se lembrar de tanta gente, tantas coisas, tantos fatos.
As cartas tinham como destinatários pessoas que passaram por sua vida, algumas delas conseguia enviar, outras lhe bastava guardar, tendo a consciência tranqüila por tê-las escrito.
Contava como andava sua vida, falava do casamento, comentava da profissão, que já não trazia a mesma satisfação de antes, elogiava o lindo casal de filhos contando suas proezas. E lembrava, lembrava dos momentos tanto bons quanto ruins que viveu ao lado do destinatário, não esquecendo nunca de também pedir notícias.
Algumas vezes recebia respostas, envelopes recheados de fotos, da casa nova, da família, dos bebês recém chegados para aumentar a prole. Já alguns preferiram adotar um cachorro alegando que animais davam menos despesas e complicações futuras. Respostas de conteúdo alegre, conteúdo triste, amarguradas, apaixonadas, tons de desabafo pessoal apareciam na maioria, mas em todas um sentimento em comum, a saudade.
Concluía então que viver era isso, um circuito de sentimentos e emoções que não segue uma lógica periódica para se repetir, apenas se repetiam, repetem, repetirão...

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A verdade


Abriu a porta, afirmando que não voltaria mais. Antes de sair ainda ouviu ela falar amargurada:
- Você não sabe o que é amor, porque não sabe o que é compromisso. Me fez te amar, me fez largar tudo por você, e agora vai embora, isso é covardia!
Fechou a porta que ele deixara aberta, se jogou no sofá e sufocou um grito triste e raivoso na almofada. A vida dela girava em torno dele, tudo o que ela fazia, era para ele, e agora tudo tinha acabado. Antes a dependência era mútua e agora ele havia se libertado da corrente que os prendia.
O telefone tocou. Era ela ligando de um número desconhecido, para que ele atendesse.
- Alô?
- Que gosto ela tem?
Ele percebeu que era a voz dela. No fundo estava gostando de vê-la rastejar aos seus pés, nunca se sentira tão poderoso, e fez questão de responder dizendo:
- O mesmo gosto seu, só um pouco mais adocicado.
Do outro lado foi possível ouvir o soluço dela. Respirou fundo e perguntou:
- Por que o meu amor não foi suficiente?
Aquela conversa o deixava profundamente excitado, mesmo por telefone era incrível a submissão dela. Respondeu:
- Dizer mentiras e verdades é o que nos diferencia dos animais.
- Você não me ama mais?
E sentindo um intenso arrepio ele disse:
- Não!
- Desde quando?
- Não sei dizer ao certo.
Ela pensou em desligar naquele instante, mas resolveu lembrar do passado, como uma última tentativa de reconquistá-lo, dizendo:
- Nós dois fizemos tudo aquilo que duas pessoas fazem quando estão juntas?
E ele respondeu:
- Sim. Nós transamos.
Ambos se machucavam durante a conversa, porém ela estava maravilhosa. Era incrível como ela aveludava tudo o que dizia, e ele amargava ainda mais suas esperanças. Queria ver até que ponto ela se rebaixaria por ele.
- Só o sexo foi importante? Com ela então é só variação de cama?
- Eu sou homem, e é um instinto meu comportar-me como um predador. Sinceramente, te deixei porque sou egoísta, e acho que serei mais feliz com ela.
Tudo o que ele falava, só a fazia perceber o quanto era inútil continuar discutindo. Uma relação acabada, ele já estava com outra pessoa, e ela continuava vulnerável a alguém que não a desejava mais, que estava caçoando do antigo relacionamento, no qual ela fora enganada.
As lágrimas rolaram seu rosto, e ele do outro lado, se matinha altivo, sentindo a presa em suas mãos. Quando mais uma frase ecoou:
- Era eu quem deveria ter te abandonado.
- Você nunca faria isso.
- Tem razão, eu não seria capaz. Sou dona de um amor que só eu sinto, que só eu vejo, que só eu ouço, mas que nem eu posso tocar.
Essas últimas palavras pareciam ter causado certa perturbação nele. E ficaram em silêncio por algum tempo.
- Você é maravilhosa.
- Não precisa dizer que sou boa demais para você. Eu sou, mas não diga. Te diverti, você se cansou, e me traiu. Sempre podemos escolher entre resistir e nos entregar. Não sei quando foi o seu momento de escolha, mas sei que você teve um.
- Essa conversa não vai nos levar a nada. Vou desligar.
- Estou esperando você me deixar...mais uma vez.