quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Fatia



Saiu de casa para trabalhar, chegou ao escritório, cumprimentou quem sempre costumava cumprimentá-lo e pensou em voz alta:
- Hoje o dia vai demorar para acabar.
Andava meio abatido. A esposa estava doente, algum tipo de câncer, comentavam os colegas de repartição, e o filho adolescente estava atravessando a enésima crise dessa típica idade.
Trabalhava no décimo andar, sua mesa ficava ao lado da janela. Agradecia muito a posição favorável, pois enquanto no escritório as pessoas se repetiam nas mesmas situações, na rua eram as situações que se repetiam com diferentes pessoas.
Na hora do almoço comia sossegado. Seu dentista lhe disse:
- Não sei quantas mastigadas de um lado, não sei quantas mastigadas do outro.
Claro que o dentista usou um número mais preciso.
A tarde para ele era a pior parte do dia. O sol invadia a repartição. Justamente o símbolo da felicidade, o astro-rei que tempos atrás lhe dissolvia o cansaço, agora o fazia pensar:
- Maldito calor! Toda essa exposição ao sol ainda irá me reservar surpresas futuras como um melanoma.
Sob a mesa, ao lado do computador havia uma foto antiga da família toda. Gostava muito de fotografias, sempre dizia:
- Fotos são lembranças que podem ser tocadas, são úteis quando nossa memória já não retém mais informações.
Levantou-se, foi tomar um café. Gostava do café forte, daqueles bem amargos. Se a vida é amarga que comecemos logo pelo café.
O expediente acabou. Dois ou três colegas o convidaram para tomar uma cerveja num bar vagabundo, onde só se pode consumir aquilo que já vem lacrado de fábrica. Obviamente recusou o convite, alegando que precisava chegar cedo em casa.
Desceu do metrô, caminhava tranqüilo, naqueles dias estava anoitecendo muito rápido. Passou em frente a uma padaria e resolveu fazer um agrado pessoal. Entrou para comer um pedaço de pudim, desde criança sempre adorou pudim de padaria. Fez o pedido, sentou-se, ficou esperando.
De repente entram na padaria três pessoas. Um homem, uma mulher e um menino de no máximo uns oito anos de idade. Aparentavam ser uma família pobre.
O garoto foi até o balcão e pediu alguma coisa a simpática funcionária do estabelecimento. A moça cortou um pedaço do bolo de chocolate, colocou num pratinho e levou até a mesa dos três.
Um pedaço de bolo para comemorar o aniversário daquela criança, compreendeu. Um pedaço de bolo que naquele instante representava a felicidade dessas três pessoas. Sentiu-se envergonhando por andar se lamentando tanto, por querer guardar angústias em potes para consumi-las sempre que julgasse necessário.
Seu pedido chegou. Comeu sem tirar os olhos daquelas criaturas. Parecia agora, que não só o café, mas também o pudim estava amargo. Não sentia o mesmo prazer em degustá-lo como quando na infância.
Os olhos ficaram úmidos, sentiu uma quase incontrolável vontade de chorar. Estava começando a entender o valor de uma fatia de bolo.

Um comentário:

  1. Maravilhoso, verdadeiro e comovente... Obrigado por esse presente em forma de texto.

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